quarta-feira, novembro 29, 2006

Texto do professor Fernando Fleck

Segue o texto de Fernando Pio de Almeida Fleck.



Filosofia Antiga e Medieval: Deus
O Deus da Filosofia
Antiga e Medieval
Fernando Pio de Almeida Fleck (UFRGS)
Introdução

O título "O Deus da Filosofia", quando aplicado aos períodos antigo e medieval, exige uma distinção prévia.
Não há o Deus da Filosofia Antiga. A Antigüidade acolheu muitas filosofias e muitos deuses e mesmo filosofias que puseram em dúvida ou até rejeitaram a existência de Deus ou de deuses.
Em contrapartida, dada a disparidade muito menor de concepções no pensamento medieval, pode-se afirmar, que há o Deus da Filosofia Medieval, se pela expressão "Deus da Filosofia Medieval" entendermos tudo aquilo que os teólogos-filósofos medievais consideraram cognoscível sobre Deus à luz da razão natural, isto é, sem apelo à Revelação. O Deus dos filósofos certamente não seria reconhecido pelos não-filósofos como o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, como o seu Deus (Mas tampouco o mundo dos filósofos os não-filósofos reconhecerão como o seu mundo).
A concepção sobre Deus na filosofia medieval, como, de resto, a própria filosofia medieval em sua totalidade, resulta do acolhimento do pensamento grego por autores vinculados a uma das três religiões monoteístas.
Assim, a filosofia medieval é apenas um dos resultados possíveis do impacto do pensamento grego sobre estas religiões, aquele em que se buscou integrar filosofia e religião, isto é, expressar, na medida do possível, o conteúdo da fé em conceitos filosóficos e, também na medida do possível, justificar este conteúdo mediante demonstrações. O lema desta atitude pode ser tomado do subtítulo de uma obra de Santo Anselmo (o Proslogion), no século XI: "A fé em busca do entendimento".
A outra atitude é de conflito e de rejeição da filosofia em nome da religião, postura ilustrada, no século II, por Tertuliano ao perguntar (em Sobre a Prescrição dos Hereges, cap. 7): "O que tem a ver Atenas com Jerusalém?".
No que se segue, nosso objetivo será expor, muito resumidamente, as principais concepções gregas sobre Deus, percorrendo os períodos do pensamento antigo e, em seguida, mostrar como ocorreu a incorporação parcial destas concepções por aqueles que adotaram a atitude integradora do pensamento pagão às tradições monoteístas.
A primeira constatação - já mencionada no início - que uma comparação entre os períodos antigo e medieval nos oferece é a da pluralidade de concepções no período antigo face à unidade de concepção no período medieval.
Os filósofos gregos elaboraram suas concepções teológicas em um ambiente em que a religião oficial não tinha a importância capital e a força que adquiriu nas culturas das três tradições monoteístas.
Assim, os filósofos gregos gozaram de uma relativa liberdade que, aliada ao seu gênio criador, levou à elaboração de uma variedade de concepções que, sem grande exagero, se poderia dizer que quase esgota o campo das possibilidades. (Não devemos esquecer, no entanto, que a condenação de Sócrates e outras condenações menos famosas como a de Anáxagoras ao cárcere e a de Protágoras à morte (não levada a efeito), envolveram motivação religiosa. Diógenes Laércio, na sua Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres (IX, 52), relata que a conseqüência de Protágoras se ter declarado no início de uma de suas obras o que hoje chamaríamos de agnóstico foi a seguinte:
"... foi banido pelos atenienses e seu livros foram queimados na praça do mercado, depois de mandarem confiscar por um arauto todos os exemplares de cada um de seus possuidores".
Procuraremos, a seguir, como já anunciamos, em uma primeira parte, percorrer, de forma muito resumida, os períodos do pensamento grego, chamando a atenção para as principais concepções filosóficas sobre Deus nele elaboradas, para então, em uma segunda parte, apresentar, também de forma muito breve, o que foi recolhido e o que foi rejeitado pelos filósofos medievais, que filosofaram dentro de um dogma, cujos limites, para os que o aceitavam - não se deve desconsiderar isto - eram os limites que separam a verdade do erro.
O Período Pré-Socrático: do divino a Deus
No início da filosofia grega, um conceito impessoal de divino (theion) prevaleceu sobre o conceito pessoal de Deus (theós), mais familiar a nós.
Este fato é normalmente associado a uma concepção que se denomina hilozoísmo. A palavra "hilozoísmo" provém de hylé (matéria) e zoé (vida) e expressa a concepção que atribui vida a toda matéria. Esta concepção filosófica dos primeiros filósofos gregos possivelmente se deriva da própria religião oficial grega. Se, nesta, os fenômenos da natureza eram explicados pela atividade dos deuses, na filosofia dos primeiros pré-socráticos, é o próprio princípio material proposto por eles como explicativo de todas as coisas - a arché - que é considerado vivo e divino. Tales, o primeiro dos filósofos gregos disse que todas as coisas eram constituídas de água (DK A 3), mas disse também que todas as coisas estão cheias de deuses (DK A 12). Assim, a natureza - a physis - sendo dotada de movimento - especialmente de movimento regular - é considerada viva, e, além disso, sendo imortal (athanatos) e imperecível (Phys., III, 203b), divina. Sobre isso, há testemunho explícito do próprio Aristóteles, que, referindo-se ao princípio admitido por Anaximandro, o ápeiron ou infinito/ilimitado/indeterminado, afirma que ele é chamado "divino" (theion), porque é imortal e indestrutível. O lógos/fogo de Heráclito também pode ser incluído neste modo de conceber as coisas. Assim, no período inicial da filosofia grega, o conceito do divino impessoal imanente a todas as coisas tem mais relevância do que o de Deus. Não há, propriamente, um Deus desta filosofia pré-socrática.
Um episódio, à parte, ocorrido neste período, e de especial interesse para o nosso tema, é, porém, a crítica ao antropomorfismo religioso empreendida por Xenófanes. Entre os fragmentos de Xenófanes se lê o seguinte:
"Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, cada um reproduzindo a sua própria forma". (DK B 15)
"Os etíopes dizem que seus deuses são negros e de nariz chato; os trácios, que têm olhos azuis e cabelos vermelhos" (DK B 16).
Mas Xenófanes não se limita à critica. Em oposição a este antropomorfismo, característico das religiões tradicionais, por ele criticado, Xenófanes parece já prefigurar um monoteísmo (para alguns, um panteísmo), embora não deixe de contrapor seu Deus supremo (talvez idêntico ao cosmo) a deuses menores, caracterizando assim o que se chama henoteísmo:
"Uno, Deus, sumo entre os deuses e os homens, nem por figura nem por pensamento semelhante aos homens" (DK B 23).
"Todo inteiro vê todo inteiro entende, todo inteiro ouve (DK B 24).
"E, sem esforço, move tudo com a força de seu pensamento (DK B 25).
"Permanece sempre imóvel no mesmo lugar; e não lhe convém mover-se de um lugar para outro (DK B 26).
Percebe-se aqui claramente o surgimento de uma tradição diferente. O divino é, pela primeira vez, concebido como imóvel.
O hilozoísmo mobilista dos primeiros pré-socráticos, sofre, porém, o impacto decisivo com Parmênides, que, tradicionalmente, foi tido como discípulo de Xenófanes: se o verdadeiro ser é imóvel, como ele pretende demonstrar em seu famoso poema, a matéria viva em movimento não pode ser divina. O próprio ser de Parmênides, embora não identificado expressamente com Deus é, de certo modo, já uma prefiguração do Deus da teologia clássica: uno, simples, eterno, imutável. As concepções dos principais pré-socráticos posteriores acusam este impacto do pensamento de Parmênides: Empédocles já atribui a duas forças - Amizade e Discórdia - externas aos quatro elementos, o papel de moventes, e Anaxágoras sustenta a separação de tudo mais de seu princípio, que é um nous, isto é, um Intelecto que move teleologicamente. Este intelecto separado e finalístico de Anaxágoras é outro marco na passagem do divino impessoal dos primeiros físicos para o Deus dos filósofos.
O Período Antropológico: os Sofistas e Sócrates
A este período cosmológico, sucede-se, no século V antes de Cristo, o período antropológico, dos Sofistas e de Sócrates.
Os sofistas, que já foram chamados de iluministas da Antigüidade, manifestam claramente esta característica moderna em sua atitude frente à religião, que é, ou de desconfiança, ou mesmo de franca hostilidade, pela rejeição da existência dos deuses e pela postura no que diz respeito à origem da religião. Assim, constata-se expressamente, como já referimos acima, o agnosticismo, em Protágoras:
"Quanto aos deuses, não tenho meios de saber se eles existem ou não existem; são muitos os obstáculos impeditivos do conhecimento, como a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana." (DK B 4; Diógenes Laércio, Vidas, IX, 51)
Em Crítias (DK B 25), manifesta-se o ateísmo mediante uma explicação naturalista da origem da religião oficial. Já o sofista Pródico explicava a origem da crença nos deuses na divinização do útil: os deuses seriam valores úteis personificados.
"Os antigos consideraram deuses, em virtude das vantagens que daí derivava, o sol, a lua, os rios, as fontes e, em geral, todas as forças que beneficiavam a nossa vida, como, por exemplo, os egípcios, o Nilo, e, por isso, o pão era considerado como Deméter, o vinho, como Dionísio, a água, como Posseidon, o fogo como Hefesto, e, assim, cada uma dos bens que nos são úteis (DK B 5; Sexto Empírico, Adv. math. IX, 18)"
Mas Crítias, com mais veemência, sustenta:
"... os antigos legisladores fizeram de deus uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou más, com a finalidade de que ninguém ofendesse traiçoeiramente o seu próximo, por medo de uma vingança dos deuses". A própria localização dos deuses no céu, segundo Crítias teria finalidade estratégica. E seu poder de conhecer os pensamentos dos seres humanos os tornava espiões perfeitos" (DK B 25; Sexto Empírico, Adv. math. IX, 25).
Aos sofistas se contrapõe a figura única (e múltipla) de Sócrates.
Determinar a atitude de Sócrates quanto a Deus ou quanto aos deuses é uma tarefa tão difícil como o é determinar sua atitude frente a qualquer tema. Sabemos que ele foi condenado por impiedade (por pregar falsos deuses), mas há pronunciamentos e mesmo atos atribuídos a ele que revelam reverência à religião oficial. É possível que se tratasse apenas de uma concessão exterior ao que ele considerava uma convenção social. Sócrates parece, na verdade, ter defendido uma espécie de teísmo providencialista. Em Xenofonte, encontra-se atribuída a ele uma prova da existência de Deus a partir da ordem do universo (Memoráveis, I, 4). Assim, o Deus de Sócrates parece ser uma inteligência ordenadora, ao modo do nous de Anaxágoras (Lembre-se que Arquelau, um discípulo de Anaxágoras foi professor do jovem Sócrates). Em todo caso, a atividade pessoal de Sócrates, de cultivo da própria alma e das almas dos outros é descrita por ele mesmo, na Apologia, como uma missão recebida de Deus.
O Periodo Ontológico: Platão e Aristóteles
Em Platão, pode-se, esquematicamente, constatar a presença das noções de divino e de Deus em dois elementos de sua obra: divino é o mundo inteligível, divinas são, antes de tudo, as idéias e, principalmente, divina é a idéia de bem, o sol do mundo das idéias. Por outro lado, Deus personificado, em Platão, é o demiurgo do Timeu, o artifíce que faz o mundo a partir do caos material do receptáculo, modelando-o segundo as formas exemplares, as Idéias. Costuma-se observar, com razão, que este Deus pessoal de Platão não ocupa o ápice de sua ontologia, pois tem acima de si as próprias Idéias. Talvez a mais decisiva contribuição de Platão neste contexto seja, entretanto, algo mais fundanental: a própria admissão do imaterial transcendente e imutável nitidamente separado dos corpos em movimento, algo que até então nenhum filósofo propusera, pelo menos com esta nitidez.
Também em Aristóteles, encontram-se representadas as duas noções, a de divino e a de Deus. Divino é o céu, porque é imortal, e radicalmente diferente do mundo sub-lunar. Deus - cuja existência se demonstra a partir do próprio mundo - é o Primeiro Motor imóvel, ato puro, portanto imaterial, vivente, não-espacial e não-temporal, pensamento de pensamento, de que dependem todas as coisas por ele movidas como fim. Este monoteísmo é, de certo modo, atenuado pela admissão de uma pluralidade de motores imóveis, cujas relações com o primeiro motor não são, de resto, explicadas por Aristóteles.
Embora nos escritos de Aristóteles se encontrem passagens favoráveis à admissão de um conhecimento de Deus sobre o mundo e de uma providência divina, a interpretação mais aceita de seu pensamento maduro e característico é que Deus pensa exclusivamente sobre si mesmo e move o mundo apenas como um objeto amado, em uma relação em que o amor do mundo a Deus não é correspondido. A teleologia presente no universo é em grande parte inconsciente. Assim, o Deus de Aristóteles não deve ser visto ao modo do arqueiro que conscientemente lança a flecha ao alvo; nem as coisas da natureza, como conscientemente aspirando a Deus, o que caracterizaria uma concepção animista, estranha à teologia de Aristóteles. Talvez uma comparação que, embora prosaica, auxilie, seja com o ímã que atrai a limalha de ferro sem qualquer conhecimento disto, tanto da parte do ímã que atrai, como da parte da limalha atraída. Além disso, para Aristóteles, o modo como o mundo depende de Deus não atinge a sua existência no sentido absolutamente radical: para ele, a matéria é eterna e independente de Deus.
O Período Ético: Epicuristas e Estóicos
Embora o período helenístico, que se segue, se oponha a Platão e a Aristóteles ao recusar a admissão de qualquer realidade incorpórea, sendo, portanto, materialista, não é, diferentemente do que se poderia inicialmente supor, ateísta.
O epicurismo e o estoicismo, as duas principais escolas deste período, têm, também quanto a Deus ou quanto aos deuses, concepções afirmativas, mas muito diversas.
No que diz respeito à escola epicurista, pode-se sustentar que foi a irrelevância do papel cósmico por ela atribuído aos deuses que a fez ser considerada ateísta. Na realidade, Epicuro admite um politeísmo não-providencialista. O epicurismo afirma a existência de uma pluralidade de mundos e de uma multidão de deuses materiais de forma semelhante à humana, mas imperecíveis, habitando os intermundos. Estes deuses vivem felizes sem intervir no nosso mundo ou nos outros. Eles devem ser honrados simplesmente por sua superioridade, já que não pode haver interesse algum de nossa parte em agradá-los, considerando que não intervêm em nosso mundo.
Encontra-se em uma passagem da carta de Epicuro a Meneceu uma afirmação crítica à religião tradicional, mas não de caráter ateu ou agnóstico, e sim depurativo:
"Ímpio não é quem elimina os deuses aceitos pela maioria, e sim quem aplica aos deuses a opinião da maioria" (Diógens Laércio, Vidas, X, 123).
A Epicuro é atribuída, paradoxalmente, o que é considerado o argumento clássico contra a compatibilidade da existência de Deus e do mal. No contexto epicurista, o argumento parece, no entanto, consistir antes em um ataque aos que afirmam uma relação de Deus com o mundo.
"Deus ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode". Se quer e não pode, é impotente, o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que do mesmo modo é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto nem mesmo é Deus. Se pode e quer, o único que convém a Deus, de onde provém, então, a existência dos males? Por que não os impede? (Fr. 374 Usener).
Se no epicurismo encontramos uma pluralidade de deuses despreocupados com uma pluralidade de mundos; no estoicismo, o único mundo admitido como existente está impregnado por um único deus material, que é fogo/logos e que o rege como que desde dentro. O que temos, portanto, é um panteísmo providencialista. O universo é um animal vivente impregnado pela razão. A necessidade que rege todas as coisas não é a necessidade cega, mas a necessidade dos desígnios da razão divina universal. Daí o otimismo dos estóicos em cujo sistema o mal parece não ter lugar.
Período Religioso: O Platonismo Médio e o Neoplatonismo
No período que sucedeu ao helenístico e que se costumou chamar significativamente de Período Religioso, a principal corrente filosófica é o Neoplatonismo, que se desenvolveu entre os séculos III e VI de nossa era e que, portanto, já conviveu com a tradição cristã.
Antes do neoplatonismo, no entanto, diferentes correntes de cunho filosófico-religioso se desenvolveram, preparando o caminho para a corrente neoplatônica.
Entre elas, encontra-se o chamado Platonismo Médio, responsável por, pelo menos, uma alteração no platonismo original que viria a ter uma influência permanente na teologia monoteísta tradicional. Trata-se do que se poderia chamar de uma "relocalização" das Idéias platônicas, sua "passagem" do mundo inteligível para a mente divina. Esta alteração é importante, porque, sem eliminar a admissão de Idéias, retira delas o posto supremo na ontologia, acima do Deus demiurgo.
No neoplatonismo, o ápice da realidade não é ocupado propriamente por Deus, mas pelo Uno, do qual tudo mais deriva por uma processão eterna, que não empobrece o próprio Uno, mas se enfraquece à medida que dele se afasta. Ao Uno, por outro lado, tudo é também atraído em um movimento de retorno. O Uno transcende ao próprio ser e é totalmente inefável.
Com o neoplatonismo, chegamos à última corrente filosófica da Antigüidade pagã e passamos agora à Filosofia Medieval.
O Deus da Filosofia Medieval
O que consideramos aqui filosofia medieval abrange não apenas o pensamento filosófico-teológico que se desenvolveu durante a Idade Média, mas também o pensamento de autores vinculados a uma tradição religiosa monoteísta, principalmente a cristã, na Antigüidade, pois, entre os séculos I e VI d. C., as últimas manifestações do pensamento grego, ou antes, greco-romano, convivem com as primeiras manifestações de um pensamento filosófico judaico e cristão. Trata-se do período dos Judeus Alexandrinos e, depois, da Patrística Cristã.
O nosso objetivo a partir de agora, como foi mencionado no início, será procurar mostrar, em linhas muito gerais, considerando as principais doutrinas mencionadas até aqui, o que foi acolhido, o que foi rejeitado e o que foi acrescentado pela tradição monoteísta no que tange ao conceito de Deus.
Podemos partir do que foi obviamente rejeitado pelas tradições monoteístas: o ateísmo, o agnosticismo e o politeísmo.
Quanto ao ateísmo e ao agnosticismo, os filósofos medievais os rejeitaram, porque consideraram a existência de Deus como demonstrável. Empregaram-se, para isso, muitos argumentos já presentes no pensamento grego, especialmente em Platão e em Aristóteles. Preponderaram argumentos a posteriori cosmológicos, de influência mais diretamente aristotélica, como aqueles a partir da mudança e da causalidade, mas também se encontram argumentos de influência platônica, como o das Verdades Eternas, que pressupõe o acesso às Idéias, ou o argumento pelos graus de perfeição, que inclui a aceitação de uma forma de doutrina da participação. O famoso argumento a simultaneo de Santo Anselmo, que foi, entretanto, sujeito a disputas quanto a sua validade desde a sua proposição, pode ser considerado como original, sem precedente na filosofia antiga.
O politeísmo também foi excluído demonstrativamente. Não há a possibilidade de haver mais de um Deus por aquilo que o monoteísmo considera que Deus é: o cúmulo de todas as perfeições, das quais as perfeições das criaturas são apenas participações limitadas. A pretensa perfeição que distinguiria dois deuses seria uma que um dos dois não possuiria, o que o impediria de ser Deus, já que Deus é o cúmulo de todas as perfeições.
Rejeitado foi também o materialismo: Deus não pode ser corpóreo, porque todo corpo é composto. Se Deus é a realidade primeira, não pode ser composto, mas deve ser simples, já que todo composto é derivado daquilo de que se compõe.
Rejeitado foi igualmente o panteísmo. Deus está em toda parte por seu poder, por sua ciência e como causa da existência e da conservação da existência de todas as coisas, mas transcende ao mundo, pois é criador do mundo. O mundo existe por participação, e Deus, por essência.

Acolhida foi a crítica ao antropomorfismo. Desde muito cedo os filósofos nas tradições monoteístas deram-se conta de que as descrições e narrativas sobre Deus contidas nas Escrituras não podiam ser interpretadas literalmente. Desenvolveu-se, por isso, a concepção que as Escrituras contêm metáforas que devem ser resgatadas. Assim, por exemplo, a ira de Deus é apenas uma metáfora, pois, sendo a ira uma paixão, só pode ser atribuída a um ente corpóreo. A ira de Deus deve ser entendida, excluída a metáfora, como a sua oposição ao pecado e a sua vontade justa de puni-lo.
Acolhida foi também a providência, bem com o governo do mundo, negada pelos epicuristas e, segundo a interpretação mais comum, também por Aristóteles, mas já prefigurada no pensamento pré-socrático e aceita por Sócrates e Platão (especialmente mediante a figura do demiurgo) e, a seu modo imanente, pelos estóicos. A providência cristã, entretanto, estende-se ao plano do indivíduo.
A teoria das Idéias, na forma em que Platão a estabeleceu, é incompatível com a tradição monoteísta, porque, como já vimos, em Platão, as idéias são as entidades supremas, e o análogo platônico de Deus, o demiurgo, é inferior a elas, ordenando o mundo a partir da contemplação do modelo superior que é o mundo das Idéias. No período do chamado platonismo médio, como também foi visto, realizou-se a alteração que se tornará decisiva na tradição monoteísta, por obra, especialmente, de Filo de Alexandria, no pensamento judaico, e de Santo Agostinho, no pensamento cristão: As idéias não são entidades subsistentes supremas, mas estão na mente divina. Mais rigorosamente, para não comprometer a simplicidade divina, é preciso dizer: as idéias são a própria essência divina na sua imitabilidade: Por um único ato cognitivo e mediante uma única espécie inteligível, que é a sua própria essência, Deus conhece a si mesmo como é e como é imitável, conhecendo assim todas as idéias, que são, justamente, os modos como a essência divina pode ser imitada.
Assim como no Neoplatonismo, o Deus do monoteísmo é rigorosamente incompreensível e inefável. Desenvolve-se, com maior ou menor ênfase, a chamada teologia negativa, que sustenta que de Deus podemos saber o que ele não é, mas não o que ele é.
O grande quadro neoplatônico de uma processão do Uno e de um retorno ao Uno é incorporado na tradição monoteísta, ainda que com alterações significativas. Se do Uno de Plotino procedia diretamente, eternamente e inexoravelmente (porque o bem é inexoravelmente difusivo de si) apenas uma única realidade, o Nous ou Espírito, de que escalonadamente derivam as demais, de Deus procede imediatamente e livremente toda a realidade em sua diversidade original, pela criação, que é um ato de pura liberalidade de Deus.
Da mesma forma, o retorno a Deus não é visto ao modo de uma simplificação, de uma eliminação de toda diversidade com respeito ao Uno, mas como visão beatífica (o que, estritamente ultrapassa o plano da filosofia): na visão beatífica, a alma humana é, com a concessão sobrenatural do lume da glória, informada pela própria essência divina, literalmente deificada.
Para concluir, mencionaremos duas noções que foram acrescentadas pela tradição monoteísta: são elas a noção de criação e de ser metafísicamente necessário.
A criação consiste na processão do mundo, não a partir de algum substrato preexistente ou da própria substância do criador, mas, literalmente, de nada. A criação expressa a concepção de uma dependência ontológica radical do mundo com respeito a Deus.
Note-se que, para muitos medievais, esta dependência não se vincula necessariamente a um começo. Daí admitirem filosoficamente a possibilidade de uma criação sem início, o que só seria rejeitado pela fé na revelação do Gênesis: "No princípio criou Deus o céu e a terra...", se "princípio" for interpretado como "começo".
A criação foi filosoficamente fundada na noções de existência por si de Deus e na existência por participação do mundo, o que nos remete ao segundo e último tema: o do ser metafisicamente necessário.
Para os medievais, Deus não apenas existe, mas não poderia não existir. Em contrapartida, tudo o que conhecemos e podemos naturalmente conhecer, neste mesmo sentido, poderia não existir.
Esta diferença é expressa com o auxílio dos conceitos de essência e existência: em todas as coisas que conhecemos, o que elas são, a sua essência, é distinta de sua existência, de seu ato de existir. Sendo assim, sua existência deve ser causada por outra coisa, já que a auto-causação da existência é absurda, pois exigiria que a coisa fosse anterior a si mesma. Assim, sob pena de regresso ao infinito, deve haver algo não causado, em que, portanto, essência e existência se identifiquem. Algo cuja essência é existir. Não podemos conceber positivamente o que isto é, mas este é o Deus dos filósofos medievais e, segundo eles, o Deus de Moisés: Aquele-Que-É (Êxodo, III, 14).