quarta-feira, novembro 29, 2006

Texto do Cesar Schirmer

Segue o texto de Cesar Schirmer.

A "Morte de Deus" e o Debate Acerca da Perda dos Conceitos Morais – Comunicação para o Questões Disputadas

César Schirmer dos Santos
UFRGS/CNPq

20 de novembro de 2006
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol?
Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, §125
É uma satisfação participar da IV Semana Acadêmica da Filosofia UFRGS. Agradeço ao CADAFI e a Melina Duarte pelo convite. Minha apresentação trata do problema da perda dos conceitos morais, no mundo sob influência européia, a partir do Iluminismo. Me concentrarei em apresentar a formulação do problema segundo Nietzsche, Anscombe e MacIntyre. Em seguida apresentarei a solução proposta por Iris Murdoch, e concluirei sugerindo rapidamente que talvez o quadro de um mundo sem Deus, vislumbrado em meados do século 20, tenha se alterado ao final do século 20.
*
Nietzsche é famoso, entre outras coisas, pela frase "Deus está morto". No parágrafo 343 d'A Gaia Ciência, obra de 1882, ele diz:
O maior acontecimento recente – o fato de que "Deus está morto", de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. […] Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e à margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral européia, por exemplo.
Como entender a afirmação que Deus está morto? Trata-se de um ataque à religião vigente? Longe disso. A afirmação da morte de Deus é, figuradamente, a constatação do estado das coisas na Europa do final do século 19. Na interpretação de Randall Havas, a "morte de Deus" é a síntese do modo como o europeu relaciona-se com o mundo e com os outros a partir do Iluminismo. Ele diz, em um texto publicado em 1992:
A morte de Deus significa que já não podemos dar sentido à idéia que o valor da vida é imposto à mesma de fora. Isso, por sua vez, sugere que nós mesmos devemos, de alguma maneira, ser responsáveis pela mesma. Mas precisamente essa conclusão parece nos deixar sem uma imagem filosoficamente operacional de onde vem tal responsabilidade. Quer dizer, enquanto o mundo permanece um lugar inteligível no despertar da morte de Deus, essa inteligibilidade, agora parece, nem pode ser meramente imposta a nós pelo mundo, nem pode ser encontrada simplesmente escrita na superfície das coisas, de alguma maneira inerente à natureza do mundo. A morte de Deus sugere, então, que bem na hora que pensamos estar finalmente nos tornando mais transparentes a nós mesmos – mais plenamente humanos – estamos de fato confrontados com uma dificuldade intrínseca para nos compreendermos.
Voltando a Nietzsche, ele está dizendo que Deus, o fiador da moralidade européia, está sem crédito na praça. Os europeus já não crêem em Deus. Ele está dizendo também, profeticamente, bem ao seu estilo, que da perda da credibilidade de Deus seguirá a derrocada da moralidade européia, pois a mesma sustenta-se em Deus. Reiterando, e explicitando, o problema não é, na constatação de Nietzsche, a perda de crédito de Deus junto a Nietzsche, mas sim a perda de crédito de Deus junto aos europeus.
Estará Nietzsche certo na sua constatação? Perguntemos a outros filósofos, como a fervorosa católica e eminente filósofa analítica G.E.M. Anscombe. Ela diz, em 1958:
[…] os conceitos de obrigação e dever – isto é, obrigação moral e dever moral – e do que é moralmente certo e errado, e do sentido moral de "deve", devem ser lançados ao mar, se isso for psicologicamente possível; pois eles são sobreviventes, ou derivativos de sobreviventes, de uma concepção anterior de ética que geralmente já não sobrevive, e são apenas nocivos sem ela.
Segundo Anscombe, nós herdados dos gregos, através dos cristãos, o conceito de "dever". Entre os gregos o conceito não tinha sentido moral, mas entre os cristãos sim, por causa da concepção legalóide de ética que os cristãos herdam do judaísmo. Em tal concepção normativa da ética, só é possível que um homem seja mau enquanto homem (não enquanto artesão, soldado, etc.) se houver a crença em um Deus legislador. O que ocorre, na ausência de tal crença, é a ausência de falta, erro ou pecado. Como ela diz, sem a crença em Deus:
É como se a noção de "criminalidade" fosse permanecer quando as leis e as cortes criminais houvessem sido abolidas e esquecidas.
Segundo Anscombe, a partir de Hume a noção de obrigação moral é esvaziada da sua base teológica. Em conseqüência disso, diz ela, temos agora em nosso vocabulário uma noção supostamente moral, a noção de "dever", a qual "mantém sua atmosfera mas não seu significado". Ante tal situação, ela diz que "seria mais razoável abandoná-la".
Aceitando que Nietzsche e Anscombe acertam em seus diagnósticos, em 1882 a Europa ainda estava para reconhecer a perda da sua velha moralidade, devido à perda da fé em Deus, e em 1958 um elemento fundamental dessa moralidade, a noção de obrigação moral, já era visto como perdido pelo mesmo motivo.
Perder a noção de obrigação moral, em uma ética normativa, já é perder bastante. Mas MacIntyre diz que a situação é ainda pior. Ele diz, generalizando o ponto de Anscombe aos mais diversos conceitos morais:
[…] no mundo real que habitamos a linguagem da moralidade está no […] estado de grave desordem […]. O que possuímos […] são os fragmentos de um esquema conceitual, partes às quais atualmente faltam os contextos de onde derivavam seus significados. Temos, na verdade, simulacros da moralidade, continuamos a usar muitas das suas expressões principais. Mas perdemos – em grande parte, se não totalmente – nossa compreensão, tanto teórica quanto prática, da moralidade.
[…] os conceitos que empregamos mudaram de caráter nos últimos trezentos anos; as expressões normativas que usamos mudaram de significado. Na transição da diversidade de contextos dos quais se originaram até nossa cultura contemporânea, "virtude", "justiça", "piedade", "obrigação" e até "dever" tornaram-se diferentes do que eram.
Naturalmente não posso negar, e na verdade minha tese exige, que a linguagem e as aparências da moralidade persistam, embora a substância integral da moralidade tenha se fragmentado muito e, assim, tenha sido, em parte, destruída.
MacIntyre, como Nietzsche e Anscombe, nos retrata em uma situação de desmoronamento, morte ou fragmentação dos antigos fundamentos do nosso quadro moral. Segundo esses filósofos, ao menos na medida em que somos filhos do Iluminismo, nós vivemos em um mundo no qual certa fundamentação da moral foi perdida. Cada um desses filósofos reage de maneira diferente a tal perda. Nietzsche a celebra na continuação do §343 da Gaia Ciência, Anscombe nos convida a jogar ao mar a carga inútil, os conceitos morais de base teológica agora vazios, e MacIntyre se concentra em descrever nossa situação em um mundo no qual nossos conceitos morais em geral são vazios.
É preciso notar, apesar das semelhanças, as diferenças entre as posturas desses filósofos. Nietzsche nos retrata em uma situação na qual a ausência de Deus abre espaço para uma nova e melhor fundamentação da moralidade. Tomando emprestada uma noção propagada por Thomas Kuhn, é como se Nietzsche estivesse vendo uma mudança de paradigma tendo curso. Dadas suas críticas ao paradigma anterior, cristão, e sua proposta de um paradigma mais ligado à vida, um paradigma que não seja niilista, é compreensível que ele festeje a "morte de Deus". Anscombe, por sua vez, não está dizendo que nossa moral como um todo está sendo aniquilada, ou que a moralidade é impossível sem a noção de obrigação moral. A ética aristotélica é testemunho dessa possibilidade. Ela diz, muito especificamente, que certos conceitos morais, como nosso conceito de "dever", carecem de significado na ausência de fé em Deus. Ela tem uma proposta positiva para resolver tal problema, a saber, desenvolver uma nova filosofia da mente, uma nova filosofia da psicologia. MacIntyre, por fim, está fazendo algo muito diferente ao dizer que nosso vocabulário moral em geral é vazio. É provável que seu ponto de vista não possa ser levado ao extremo. Como diz Cora Diamond:
A alegação de MacIntyre que de fato perdemos conceitos morais não pode ser levada tão longe ao ponto de sugerir que não podemos vir a compreender e apreciar o que perdemos. Estou sugerindo, então, que seu livro [Depois da Virtude] nos convida a reconhecer um lugar para os velhos conceitos na vida de agora, como um padrão, como algo que podemos usar na compreensão e avaliação da nossa própria situação.
Voltando à proposta de solução do problema da perda dos conceitos morais de Anscombe, como seria uma filosofia da mente operacional em um mundo – no nosso mundo – no qual os conceitos morais fundados em um Deus legislador não estivessem disponíveis? Iris Murdoch responde essa questão em A Soberania do Bem. A resposta de Murdoch tem duas partes. Primeiro, uma crítica da noção de mente e de homem que ela atribui aos filósofos do século 20, os herdeiros do Iluminismo. Segundo, a proposta de uma filosofia da mente alternativa, a qual admite que temos a capacidade de ver o Bem.
De acordo com Murdoch, é típico da filosofia de meados do século 20, tanto na Europa continental (França e Alemanha) quanto no mundo anglo-saxão, ver o homem como um ser dotado de conhecimento, o qual é oriundo de informações captadas através da percepção, e também de vontade. Nessa representação da mente humana não há espaço para o conhecimento, visão ou intuição do que não pode ser dado pelos sentidos. Não há conhecimento do Bem, por exemplo. Além disso, e aqui vou além de Murdoch, não é claro se os filósofos do século 20 aceitam que a vontade tem um objeto formal. Na filosofia medieval, e também na filosofia do século 17, o Descartes da "Quarta Meditação" é um exemplo, a vontade é vista como uma faculdade mental que move-se pela representação do Bem. O Bem é o objeto formal da vontade em tais filosofias do passado, mas esse não parece ser o caso na filosofia do século 20. Ante tal quadro, assim representado, me parece que devemos concordar com Murdoch quando ela diz que para os filósofos de meados do século 20, tanto existencialistas quanto filósofos da linguagem cotidiana, os quais vêem a moral como uma teoria acerca do comportamento, da ação, a vontade é uma faculdade que move-se a partir de nada. Não há objeto formal da vontade, e não há valores que sejam objeto de conhecimento para o sujeito, pois tudo o que é dado a conhecer é aquilo que é dado à percepção, aos sentidos, e valores não estão aí para ser vistos através da percepção. Talvez os valores estejam apenas "nos olhos de quem vê", sendo, de certa maneira, subjetivos.
Ante tal quadro, o qual ela considera insustentável, Murdoch propõe uma filosofia da mente alternativa. Murdoch propõe que o Bem é objeto de visão intelectual, e de conhecimento. É preciso deixar claro que o Bem, para Murdoch, não é uma espécie de disfarce de Deus. Bem é um conceito, e Deus não costuma ser tratado como um (mero) conceito pelos filósofos que investigam seu ser.
Obviamente, os filósofos de meados do século 20 – chamemos aos membros dos dois grupos, tanto analíticos como continentais, igualmente de "existencialistas", tal como faz Murdoch – protestariam ante tal teoria. Tais filósofos diriam que temos olhos, ouvidos, nariz, pele, língua, isto é, órgãos dos sentido, mas não temos um órgão para captar o Bem. Em vista disso eles diriam que a proposta de Murdoch é mero misticismo. É como se, na carência de Deus, um arremedo de Deus igualmente além do conhecimento, a idéia do Bem, estivesse sendo sugerido.
Em resposta aos existencialistas, Murdoch admite que adota uma espécie de misticismo, isto é, de teoria que admite algum tipo de visão de algum tipo de realidade que não é captada pelos cinco sentidos, e da qual a experiência estética da beleza é testemunha. Ela diz:
De fato a dificuldade é olhar. Se alguém não acredita em um Deus pessoal não há "problema" do mal, mas há a quase insuperável dificuldade de concentrar a atenção no sofrimento e no pecado, nos outros ou em si mesmo, sem falsificar o quadro de alguma maneira enquanto se o torna suportável. […] Há […] algo na tentativa séria de olhar compassivamente para as coisas humanas que automaticamente sugere que "há mais do que isto". O "há mais do que isto", se não é corrompido por algum tipo de finalidade quase-teológica, deve permanecer uma minúscula centelha de insight, alguma coisa com, tal como é, uma posição metafísica mas sem forma metafísica. Mas me parece que a centelha é real, e que a grande arte é evidência da sua realidade.
Embora tal postura seja oposta à quase totalidade das práticas filosóficas contemporâneas, será tal teoria privada de respeitabilidade teórica por ser mística? Aos que pensam assim não é demais lembrar que Platão, nosso pai, estava inclinado a tratar as coisas dessa maneira. Sobre o misticismo, Murdoch rejeita a oposição, estabelecida por Bertrand Russell, entre misticismo e lógica. Para ela, o homem bom tem noção do magnetismo do Bem, e nesse sentido é místico, e mesmo religioso.
Para Murdoch, o problema moral mais básico é o egoísmo. Ela entende por místico o homem que usa a visão (intelectual) para ver as coisas tal como as mesmas são, e que em decorrência disso se afasta do egoísmo. O existencialista, aquele que exalta o indivíduo de maneira anti-social, romântica e solipsista, é o personagem filosófico oposto ao místico. Para Murdoch, o existencialista volta-se apenas para si mesmo, e não vê mistério algum no mundo, o que falsifica o quadro da situação do homem no universo.
As religiões dispõem de técnicas e exercícios espirituais para purgar o egoísmo, purificar a alma. Entre tais técnicas estão os rituais e as orações. Mas, em um mundo sem religião, tal como o mundo de meados do século 20, como evitar o egoísmo? Para Murdoch, é preciso que o indivíduo sem Deus tenha uma atitude cognitiva para com o Bem semelhante à atitude cognitiva do fiel para com Deus durante a oração. Orar, diz Murdoch, é focar amorosamente a atenção em Deus. Deus, segundo Murdoch, era ou é:
[…] um objeto real de atenção único, perfeito, transcendente, não-representável e necessário.
Para purgar o egoísmo e tornar-se uma pessoa melhor, o que é o objetivo da moral, o homem-sem-Deus precisa de um objeto de atenção que tenha todas as características de Deus. Murdoch propõe que o Bem pode ser tal objeto de atenção. O Bem (1) pode ser foco da atenção do sujeito, (2) é um conceito unitário, supremo, (3) é transcendente no sentido de ser exterior ao indivíduo, exigir que a atenção volte-se para fora, para o mundo, (4) é uma perfeição, (5) está acima da dúvida para aquele que o tem em atenção, e (6) é real no sentido se não esgotar-se na sua percepção.
Seria preciso apresentar a posição de Murdoch com mais calma, mas nesta comunicação não posso fazer mais do que dar uma notícia da mesma. Fecho a apresentação da mesma com a resposta de Murdoch a uma possível crítica: Trata-se de uma teoria da moral, e logo da prática, ao alcance apenas de uma elite de místicos, ou de uma teoria ao alcance de todos? Para Murdoch, trata-se de uma teoria ao alcance de todos. Ela diz:
O fundamento para a moral é propriamente certo tipo de misticismo, se por isso se entende uma fé não-dogmática e essencialmente não-formulada na realidade do Bem, ocasionalmente conectada com a experiência. O camponês virtuoso sabe, e creio que continuará sabendo, apesar da remoção ou modificação do aparato teológico, embora ele possa ter dificuldade para dizer o que sabe.
*
Por fim, me parece apropriado nos perguntarmos se o cenário vislumbrado pelos filósofos antes mencionados, se o cenário de desaparição ou diminuição da influência da religião se mantém nos dias de hoje. Tomando como apoio a exposição de Jacques Derrida no livro A Religião, creio que o quadro consistentemente visto pelos filósofos ao longo do século 20, isto é, o quadro de perda da religião, e de Deus, talvez tenha se alterado. Caso tenha havido tal alteração, isto é, caso a religião esteja, ainda que de uma nova maneira, voltando a ocupar um espaço importante na vida das pessoas, no mundo europeu por filiação ou adoção, teremos que repensar os problemas apresentados acima. Acima me concentrei na questão da perda dos conceitos morais a partir da perda da fé em Deus na história recente da Europa. Nesse quadro, a volta da religião significa, automaticamente, a volta do fundamento teológico para certo discurso moral? Eis um problema.

Referências bibliográficas
Anscombe, G.E.M. "Modern Moral Philosophy." In Ethics: History, Theory, and Contemporary Issues, editado por Steven M. Cahn e Peter Markie. New York e Oxford: Oxford University Press, 2006 [1958].
Brandom, Robert B. Making It Explicit. Cambridge, EUA e London: Harvard University Press, 1998 [1994].
Conradi, Peter. "Editor's Preface." In Existentialists and Mystics: Writings on Philosophy and Literature, editado por Peter Conradi, pp. xix-xxx. New York e London: Penguin Books, 1999 [1997].
Derrida, Jacques. "Fé e Saber: As Duas Fontes Da 'Religião' nos Limites da Simples Razão." In A Religião, editado por Jacques Derrida e Gianni Vattimo. São Paulo: Estação Liberdade, 2004 [1996].
Diamond, Cora. "Losing Your Concepts." Ethics 98 (1988): 255-77.
Havas, Randall E. "Who Is Heidegger's Nietzsche? (On the Very Idea of the Present Age)." In Heidegger: A Critical Reader, editado por Hubert Dreyfus e Harrison Hall, pp. 231-46. Cambridge, USA e Oxford: Blackwell, 1992.
Hood, Robert E. "Must God Remain Greek?" In African Philosophy: An Anthology, editado por Emmanuel Chukwudi Eze, pp. 462-67. Bodmin, Inglaterra: Blackwell, 2004 [1990].
Murdoch, Iris. "The Existentialist Hero." In Existentialists and Mystics: Writings on Philosophy and Literature, editado por Peter Conradi, pp. 108-15. New York e London: Penguin Books, 1999 [1950].
-----. "Existentialist Bite." In Existentialists and Mystics: Writings on Philosophy and Literature, editado por Peter Conradi, pp. 151-54. New York e London: Penguin Books, 1999 [1957].
-----. The Sovereignity of Good. London e New York: Routledge, 2004 [1970].
-----. Metaphysics as a Guide to Morals. New York e London: Penguin Books, 1993 [1992].
Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência. Traduzido por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1882].
Steiner, George. "Foreword." In Existentialists and Mystics: Writings on Philosophy and Literature, editado por Peter Conradi, pp. ix-xviii. New York e London: Penguin Books, 1999 [1997].

Texto do professor Fernando Fleck

Segue o texto de Fernando Pio de Almeida Fleck.



Filosofia Antiga e Medieval: Deus
O Deus da Filosofia
Antiga e Medieval
Fernando Pio de Almeida Fleck (UFRGS)
Introdução

O título "O Deus da Filosofia", quando aplicado aos períodos antigo e medieval, exige uma distinção prévia.
Não há o Deus da Filosofia Antiga. A Antigüidade acolheu muitas filosofias e muitos deuses e mesmo filosofias que puseram em dúvida ou até rejeitaram a existência de Deus ou de deuses.
Em contrapartida, dada a disparidade muito menor de concepções no pensamento medieval, pode-se afirmar, que há o Deus da Filosofia Medieval, se pela expressão "Deus da Filosofia Medieval" entendermos tudo aquilo que os teólogos-filósofos medievais consideraram cognoscível sobre Deus à luz da razão natural, isto é, sem apelo à Revelação. O Deus dos filósofos certamente não seria reconhecido pelos não-filósofos como o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, como o seu Deus (Mas tampouco o mundo dos filósofos os não-filósofos reconhecerão como o seu mundo).
A concepção sobre Deus na filosofia medieval, como, de resto, a própria filosofia medieval em sua totalidade, resulta do acolhimento do pensamento grego por autores vinculados a uma das três religiões monoteístas.
Assim, a filosofia medieval é apenas um dos resultados possíveis do impacto do pensamento grego sobre estas religiões, aquele em que se buscou integrar filosofia e religião, isto é, expressar, na medida do possível, o conteúdo da fé em conceitos filosóficos e, também na medida do possível, justificar este conteúdo mediante demonstrações. O lema desta atitude pode ser tomado do subtítulo de uma obra de Santo Anselmo (o Proslogion), no século XI: "A fé em busca do entendimento".
A outra atitude é de conflito e de rejeição da filosofia em nome da religião, postura ilustrada, no século II, por Tertuliano ao perguntar (em Sobre a Prescrição dos Hereges, cap. 7): "O que tem a ver Atenas com Jerusalém?".
No que se segue, nosso objetivo será expor, muito resumidamente, as principais concepções gregas sobre Deus, percorrendo os períodos do pensamento antigo e, em seguida, mostrar como ocorreu a incorporação parcial destas concepções por aqueles que adotaram a atitude integradora do pensamento pagão às tradições monoteístas.
A primeira constatação - já mencionada no início - que uma comparação entre os períodos antigo e medieval nos oferece é a da pluralidade de concepções no período antigo face à unidade de concepção no período medieval.
Os filósofos gregos elaboraram suas concepções teológicas em um ambiente em que a religião oficial não tinha a importância capital e a força que adquiriu nas culturas das três tradições monoteístas.
Assim, os filósofos gregos gozaram de uma relativa liberdade que, aliada ao seu gênio criador, levou à elaboração de uma variedade de concepções que, sem grande exagero, se poderia dizer que quase esgota o campo das possibilidades. (Não devemos esquecer, no entanto, que a condenação de Sócrates e outras condenações menos famosas como a de Anáxagoras ao cárcere e a de Protágoras à morte (não levada a efeito), envolveram motivação religiosa. Diógenes Laércio, na sua Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres (IX, 52), relata que a conseqüência de Protágoras se ter declarado no início de uma de suas obras o que hoje chamaríamos de agnóstico foi a seguinte:
"... foi banido pelos atenienses e seu livros foram queimados na praça do mercado, depois de mandarem confiscar por um arauto todos os exemplares de cada um de seus possuidores".
Procuraremos, a seguir, como já anunciamos, em uma primeira parte, percorrer, de forma muito resumida, os períodos do pensamento grego, chamando a atenção para as principais concepções filosóficas sobre Deus nele elaboradas, para então, em uma segunda parte, apresentar, também de forma muito breve, o que foi recolhido e o que foi rejeitado pelos filósofos medievais, que filosofaram dentro de um dogma, cujos limites, para os que o aceitavam - não se deve desconsiderar isto - eram os limites que separam a verdade do erro.
O Período Pré-Socrático: do divino a Deus
No início da filosofia grega, um conceito impessoal de divino (theion) prevaleceu sobre o conceito pessoal de Deus (theós), mais familiar a nós.
Este fato é normalmente associado a uma concepção que se denomina hilozoísmo. A palavra "hilozoísmo" provém de hylé (matéria) e zoé (vida) e expressa a concepção que atribui vida a toda matéria. Esta concepção filosófica dos primeiros filósofos gregos possivelmente se deriva da própria religião oficial grega. Se, nesta, os fenômenos da natureza eram explicados pela atividade dos deuses, na filosofia dos primeiros pré-socráticos, é o próprio princípio material proposto por eles como explicativo de todas as coisas - a arché - que é considerado vivo e divino. Tales, o primeiro dos filósofos gregos disse que todas as coisas eram constituídas de água (DK A 3), mas disse também que todas as coisas estão cheias de deuses (DK A 12). Assim, a natureza - a physis - sendo dotada de movimento - especialmente de movimento regular - é considerada viva, e, além disso, sendo imortal (athanatos) e imperecível (Phys., III, 203b), divina. Sobre isso, há testemunho explícito do próprio Aristóteles, que, referindo-se ao princípio admitido por Anaximandro, o ápeiron ou infinito/ilimitado/indeterminado, afirma que ele é chamado "divino" (theion), porque é imortal e indestrutível. O lógos/fogo de Heráclito também pode ser incluído neste modo de conceber as coisas. Assim, no período inicial da filosofia grega, o conceito do divino impessoal imanente a todas as coisas tem mais relevância do que o de Deus. Não há, propriamente, um Deus desta filosofia pré-socrática.
Um episódio, à parte, ocorrido neste período, e de especial interesse para o nosso tema, é, porém, a crítica ao antropomorfismo religioso empreendida por Xenófanes. Entre os fragmentos de Xenófanes se lê o seguinte:
"Se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem, com elas, pintar e produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, e os bois, semelhantes a bois, cada um reproduzindo a sua própria forma". (DK B 15)
"Os etíopes dizem que seus deuses são negros e de nariz chato; os trácios, que têm olhos azuis e cabelos vermelhos" (DK B 16).
Mas Xenófanes não se limita à critica. Em oposição a este antropomorfismo, característico das religiões tradicionais, por ele criticado, Xenófanes parece já prefigurar um monoteísmo (para alguns, um panteísmo), embora não deixe de contrapor seu Deus supremo (talvez idêntico ao cosmo) a deuses menores, caracterizando assim o que se chama henoteísmo:
"Uno, Deus, sumo entre os deuses e os homens, nem por figura nem por pensamento semelhante aos homens" (DK B 23).
"Todo inteiro vê todo inteiro entende, todo inteiro ouve (DK B 24).
"E, sem esforço, move tudo com a força de seu pensamento (DK B 25).
"Permanece sempre imóvel no mesmo lugar; e não lhe convém mover-se de um lugar para outro (DK B 26).
Percebe-se aqui claramente o surgimento de uma tradição diferente. O divino é, pela primeira vez, concebido como imóvel.
O hilozoísmo mobilista dos primeiros pré-socráticos, sofre, porém, o impacto decisivo com Parmênides, que, tradicionalmente, foi tido como discípulo de Xenófanes: se o verdadeiro ser é imóvel, como ele pretende demonstrar em seu famoso poema, a matéria viva em movimento não pode ser divina. O próprio ser de Parmênides, embora não identificado expressamente com Deus é, de certo modo, já uma prefiguração do Deus da teologia clássica: uno, simples, eterno, imutável. As concepções dos principais pré-socráticos posteriores acusam este impacto do pensamento de Parmênides: Empédocles já atribui a duas forças - Amizade e Discórdia - externas aos quatro elementos, o papel de moventes, e Anaxágoras sustenta a separação de tudo mais de seu princípio, que é um nous, isto é, um Intelecto que move teleologicamente. Este intelecto separado e finalístico de Anaxágoras é outro marco na passagem do divino impessoal dos primeiros físicos para o Deus dos filósofos.
O Período Antropológico: os Sofistas e Sócrates
A este período cosmológico, sucede-se, no século V antes de Cristo, o período antropológico, dos Sofistas e de Sócrates.
Os sofistas, que já foram chamados de iluministas da Antigüidade, manifestam claramente esta característica moderna em sua atitude frente à religião, que é, ou de desconfiança, ou mesmo de franca hostilidade, pela rejeição da existência dos deuses e pela postura no que diz respeito à origem da religião. Assim, constata-se expressamente, como já referimos acima, o agnosticismo, em Protágoras:
"Quanto aos deuses, não tenho meios de saber se eles existem ou não existem; são muitos os obstáculos impeditivos do conhecimento, como a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana." (DK B 4; Diógenes Laércio, Vidas, IX, 51)
Em Crítias (DK B 25), manifesta-se o ateísmo mediante uma explicação naturalista da origem da religião oficial. Já o sofista Pródico explicava a origem da crença nos deuses na divinização do útil: os deuses seriam valores úteis personificados.
"Os antigos consideraram deuses, em virtude das vantagens que daí derivava, o sol, a lua, os rios, as fontes e, em geral, todas as forças que beneficiavam a nossa vida, como, por exemplo, os egípcios, o Nilo, e, por isso, o pão era considerado como Deméter, o vinho, como Dionísio, a água, como Posseidon, o fogo como Hefesto, e, assim, cada uma dos bens que nos são úteis (DK B 5; Sexto Empírico, Adv. math. IX, 18)"
Mas Crítias, com mais veemência, sustenta:
"... os antigos legisladores fizeram de deus uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou más, com a finalidade de que ninguém ofendesse traiçoeiramente o seu próximo, por medo de uma vingança dos deuses". A própria localização dos deuses no céu, segundo Crítias teria finalidade estratégica. E seu poder de conhecer os pensamentos dos seres humanos os tornava espiões perfeitos" (DK B 25; Sexto Empírico, Adv. math. IX, 25).
Aos sofistas se contrapõe a figura única (e múltipla) de Sócrates.
Determinar a atitude de Sócrates quanto a Deus ou quanto aos deuses é uma tarefa tão difícil como o é determinar sua atitude frente a qualquer tema. Sabemos que ele foi condenado por impiedade (por pregar falsos deuses), mas há pronunciamentos e mesmo atos atribuídos a ele que revelam reverência à religião oficial. É possível que se tratasse apenas de uma concessão exterior ao que ele considerava uma convenção social. Sócrates parece, na verdade, ter defendido uma espécie de teísmo providencialista. Em Xenofonte, encontra-se atribuída a ele uma prova da existência de Deus a partir da ordem do universo (Memoráveis, I, 4). Assim, o Deus de Sócrates parece ser uma inteligência ordenadora, ao modo do nous de Anaxágoras (Lembre-se que Arquelau, um discípulo de Anaxágoras foi professor do jovem Sócrates). Em todo caso, a atividade pessoal de Sócrates, de cultivo da própria alma e das almas dos outros é descrita por ele mesmo, na Apologia, como uma missão recebida de Deus.
O Periodo Ontológico: Platão e Aristóteles
Em Platão, pode-se, esquematicamente, constatar a presença das noções de divino e de Deus em dois elementos de sua obra: divino é o mundo inteligível, divinas são, antes de tudo, as idéias e, principalmente, divina é a idéia de bem, o sol do mundo das idéias. Por outro lado, Deus personificado, em Platão, é o demiurgo do Timeu, o artifíce que faz o mundo a partir do caos material do receptáculo, modelando-o segundo as formas exemplares, as Idéias. Costuma-se observar, com razão, que este Deus pessoal de Platão não ocupa o ápice de sua ontologia, pois tem acima de si as próprias Idéias. Talvez a mais decisiva contribuição de Platão neste contexto seja, entretanto, algo mais fundanental: a própria admissão do imaterial transcendente e imutável nitidamente separado dos corpos em movimento, algo que até então nenhum filósofo propusera, pelo menos com esta nitidez.
Também em Aristóteles, encontram-se representadas as duas noções, a de divino e a de Deus. Divino é o céu, porque é imortal, e radicalmente diferente do mundo sub-lunar. Deus - cuja existência se demonstra a partir do próprio mundo - é o Primeiro Motor imóvel, ato puro, portanto imaterial, vivente, não-espacial e não-temporal, pensamento de pensamento, de que dependem todas as coisas por ele movidas como fim. Este monoteísmo é, de certo modo, atenuado pela admissão de uma pluralidade de motores imóveis, cujas relações com o primeiro motor não são, de resto, explicadas por Aristóteles.
Embora nos escritos de Aristóteles se encontrem passagens favoráveis à admissão de um conhecimento de Deus sobre o mundo e de uma providência divina, a interpretação mais aceita de seu pensamento maduro e característico é que Deus pensa exclusivamente sobre si mesmo e move o mundo apenas como um objeto amado, em uma relação em que o amor do mundo a Deus não é correspondido. A teleologia presente no universo é em grande parte inconsciente. Assim, o Deus de Aristóteles não deve ser visto ao modo do arqueiro que conscientemente lança a flecha ao alvo; nem as coisas da natureza, como conscientemente aspirando a Deus, o que caracterizaria uma concepção animista, estranha à teologia de Aristóteles. Talvez uma comparação que, embora prosaica, auxilie, seja com o ímã que atrai a limalha de ferro sem qualquer conhecimento disto, tanto da parte do ímã que atrai, como da parte da limalha atraída. Além disso, para Aristóteles, o modo como o mundo depende de Deus não atinge a sua existência no sentido absolutamente radical: para ele, a matéria é eterna e independente de Deus.
O Período Ético: Epicuristas e Estóicos
Embora o período helenístico, que se segue, se oponha a Platão e a Aristóteles ao recusar a admissão de qualquer realidade incorpórea, sendo, portanto, materialista, não é, diferentemente do que se poderia inicialmente supor, ateísta.
O epicurismo e o estoicismo, as duas principais escolas deste período, têm, também quanto a Deus ou quanto aos deuses, concepções afirmativas, mas muito diversas.
No que diz respeito à escola epicurista, pode-se sustentar que foi a irrelevância do papel cósmico por ela atribuído aos deuses que a fez ser considerada ateísta. Na realidade, Epicuro admite um politeísmo não-providencialista. O epicurismo afirma a existência de uma pluralidade de mundos e de uma multidão de deuses materiais de forma semelhante à humana, mas imperecíveis, habitando os intermundos. Estes deuses vivem felizes sem intervir no nosso mundo ou nos outros. Eles devem ser honrados simplesmente por sua superioridade, já que não pode haver interesse algum de nossa parte em agradá-los, considerando que não intervêm em nosso mundo.
Encontra-se em uma passagem da carta de Epicuro a Meneceu uma afirmação crítica à religião tradicional, mas não de caráter ateu ou agnóstico, e sim depurativo:
"Ímpio não é quem elimina os deuses aceitos pela maioria, e sim quem aplica aos deuses a opinião da maioria" (Diógens Laércio, Vidas, X, 123).
A Epicuro é atribuída, paradoxalmente, o que é considerado o argumento clássico contra a compatibilidade da existência de Deus e do mal. No contexto epicurista, o argumento parece, no entanto, consistir antes em um ataque aos que afirmam uma relação de Deus com o mundo.
"Deus ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode". Se quer e não pode, é impotente, o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que do mesmo modo é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto nem mesmo é Deus. Se pode e quer, o único que convém a Deus, de onde provém, então, a existência dos males? Por que não os impede? (Fr. 374 Usener).
Se no epicurismo encontramos uma pluralidade de deuses despreocupados com uma pluralidade de mundos; no estoicismo, o único mundo admitido como existente está impregnado por um único deus material, que é fogo/logos e que o rege como que desde dentro. O que temos, portanto, é um panteísmo providencialista. O universo é um animal vivente impregnado pela razão. A necessidade que rege todas as coisas não é a necessidade cega, mas a necessidade dos desígnios da razão divina universal. Daí o otimismo dos estóicos em cujo sistema o mal parece não ter lugar.
Período Religioso: O Platonismo Médio e o Neoplatonismo
No período que sucedeu ao helenístico e que se costumou chamar significativamente de Período Religioso, a principal corrente filosófica é o Neoplatonismo, que se desenvolveu entre os séculos III e VI de nossa era e que, portanto, já conviveu com a tradição cristã.
Antes do neoplatonismo, no entanto, diferentes correntes de cunho filosófico-religioso se desenvolveram, preparando o caminho para a corrente neoplatônica.
Entre elas, encontra-se o chamado Platonismo Médio, responsável por, pelo menos, uma alteração no platonismo original que viria a ter uma influência permanente na teologia monoteísta tradicional. Trata-se do que se poderia chamar de uma "relocalização" das Idéias platônicas, sua "passagem" do mundo inteligível para a mente divina. Esta alteração é importante, porque, sem eliminar a admissão de Idéias, retira delas o posto supremo na ontologia, acima do Deus demiurgo.
No neoplatonismo, o ápice da realidade não é ocupado propriamente por Deus, mas pelo Uno, do qual tudo mais deriva por uma processão eterna, que não empobrece o próprio Uno, mas se enfraquece à medida que dele se afasta. Ao Uno, por outro lado, tudo é também atraído em um movimento de retorno. O Uno transcende ao próprio ser e é totalmente inefável.
Com o neoplatonismo, chegamos à última corrente filosófica da Antigüidade pagã e passamos agora à Filosofia Medieval.
O Deus da Filosofia Medieval
O que consideramos aqui filosofia medieval abrange não apenas o pensamento filosófico-teológico que se desenvolveu durante a Idade Média, mas também o pensamento de autores vinculados a uma tradição religiosa monoteísta, principalmente a cristã, na Antigüidade, pois, entre os séculos I e VI d. C., as últimas manifestações do pensamento grego, ou antes, greco-romano, convivem com as primeiras manifestações de um pensamento filosófico judaico e cristão. Trata-se do período dos Judeus Alexandrinos e, depois, da Patrística Cristã.
O nosso objetivo a partir de agora, como foi mencionado no início, será procurar mostrar, em linhas muito gerais, considerando as principais doutrinas mencionadas até aqui, o que foi acolhido, o que foi rejeitado e o que foi acrescentado pela tradição monoteísta no que tange ao conceito de Deus.
Podemos partir do que foi obviamente rejeitado pelas tradições monoteístas: o ateísmo, o agnosticismo e o politeísmo.
Quanto ao ateísmo e ao agnosticismo, os filósofos medievais os rejeitaram, porque consideraram a existência de Deus como demonstrável. Empregaram-se, para isso, muitos argumentos já presentes no pensamento grego, especialmente em Platão e em Aristóteles. Preponderaram argumentos a posteriori cosmológicos, de influência mais diretamente aristotélica, como aqueles a partir da mudança e da causalidade, mas também se encontram argumentos de influência platônica, como o das Verdades Eternas, que pressupõe o acesso às Idéias, ou o argumento pelos graus de perfeição, que inclui a aceitação de uma forma de doutrina da participação. O famoso argumento a simultaneo de Santo Anselmo, que foi, entretanto, sujeito a disputas quanto a sua validade desde a sua proposição, pode ser considerado como original, sem precedente na filosofia antiga.
O politeísmo também foi excluído demonstrativamente. Não há a possibilidade de haver mais de um Deus por aquilo que o monoteísmo considera que Deus é: o cúmulo de todas as perfeições, das quais as perfeições das criaturas são apenas participações limitadas. A pretensa perfeição que distinguiria dois deuses seria uma que um dos dois não possuiria, o que o impediria de ser Deus, já que Deus é o cúmulo de todas as perfeições.
Rejeitado foi também o materialismo: Deus não pode ser corpóreo, porque todo corpo é composto. Se Deus é a realidade primeira, não pode ser composto, mas deve ser simples, já que todo composto é derivado daquilo de que se compõe.
Rejeitado foi igualmente o panteísmo. Deus está em toda parte por seu poder, por sua ciência e como causa da existência e da conservação da existência de todas as coisas, mas transcende ao mundo, pois é criador do mundo. O mundo existe por participação, e Deus, por essência.

Acolhida foi a crítica ao antropomorfismo. Desde muito cedo os filósofos nas tradições monoteístas deram-se conta de que as descrições e narrativas sobre Deus contidas nas Escrituras não podiam ser interpretadas literalmente. Desenvolveu-se, por isso, a concepção que as Escrituras contêm metáforas que devem ser resgatadas. Assim, por exemplo, a ira de Deus é apenas uma metáfora, pois, sendo a ira uma paixão, só pode ser atribuída a um ente corpóreo. A ira de Deus deve ser entendida, excluída a metáfora, como a sua oposição ao pecado e a sua vontade justa de puni-lo.
Acolhida foi também a providência, bem com o governo do mundo, negada pelos epicuristas e, segundo a interpretação mais comum, também por Aristóteles, mas já prefigurada no pensamento pré-socrático e aceita por Sócrates e Platão (especialmente mediante a figura do demiurgo) e, a seu modo imanente, pelos estóicos. A providência cristã, entretanto, estende-se ao plano do indivíduo.
A teoria das Idéias, na forma em que Platão a estabeleceu, é incompatível com a tradição monoteísta, porque, como já vimos, em Platão, as idéias são as entidades supremas, e o análogo platônico de Deus, o demiurgo, é inferior a elas, ordenando o mundo a partir da contemplação do modelo superior que é o mundo das Idéias. No período do chamado platonismo médio, como também foi visto, realizou-se a alteração que se tornará decisiva na tradição monoteísta, por obra, especialmente, de Filo de Alexandria, no pensamento judaico, e de Santo Agostinho, no pensamento cristão: As idéias não são entidades subsistentes supremas, mas estão na mente divina. Mais rigorosamente, para não comprometer a simplicidade divina, é preciso dizer: as idéias são a própria essência divina na sua imitabilidade: Por um único ato cognitivo e mediante uma única espécie inteligível, que é a sua própria essência, Deus conhece a si mesmo como é e como é imitável, conhecendo assim todas as idéias, que são, justamente, os modos como a essência divina pode ser imitada.
Assim como no Neoplatonismo, o Deus do monoteísmo é rigorosamente incompreensível e inefável. Desenvolve-se, com maior ou menor ênfase, a chamada teologia negativa, que sustenta que de Deus podemos saber o que ele não é, mas não o que ele é.
O grande quadro neoplatônico de uma processão do Uno e de um retorno ao Uno é incorporado na tradição monoteísta, ainda que com alterações significativas. Se do Uno de Plotino procedia diretamente, eternamente e inexoravelmente (porque o bem é inexoravelmente difusivo de si) apenas uma única realidade, o Nous ou Espírito, de que escalonadamente derivam as demais, de Deus procede imediatamente e livremente toda a realidade em sua diversidade original, pela criação, que é um ato de pura liberalidade de Deus.
Da mesma forma, o retorno a Deus não é visto ao modo de uma simplificação, de uma eliminação de toda diversidade com respeito ao Uno, mas como visão beatífica (o que, estritamente ultrapassa o plano da filosofia): na visão beatífica, a alma humana é, com a concessão sobrenatural do lume da glória, informada pela própria essência divina, literalmente deificada.
Para concluir, mencionaremos duas noções que foram acrescentadas pela tradição monoteísta: são elas a noção de criação e de ser metafísicamente necessário.
A criação consiste na processão do mundo, não a partir de algum substrato preexistente ou da própria substância do criador, mas, literalmente, de nada. A criação expressa a concepção de uma dependência ontológica radical do mundo com respeito a Deus.
Note-se que, para muitos medievais, esta dependência não se vincula necessariamente a um começo. Daí admitirem filosoficamente a possibilidade de uma criação sem início, o que só seria rejeitado pela fé na revelação do Gênesis: "No princípio criou Deus o céu e a terra...", se "princípio" for interpretado como "começo".
A criação foi filosoficamente fundada na noções de existência por si de Deus e na existência por participação do mundo, o que nos remete ao segundo e último tema: o do ser metafisicamente necessário.
Para os medievais, Deus não apenas existe, mas não poderia não existir. Em contrapartida, tudo o que conhecemos e podemos naturalmente conhecer, neste mesmo sentido, poderia não existir.
Esta diferença é expressa com o auxílio dos conceitos de essência e existência: em todas as coisas que conhecemos, o que elas são, a sua essência, é distinta de sua existência, de seu ato de existir. Sendo assim, sua existência deve ser causada por outra coisa, já que a auto-causação da existência é absurda, pois exigiria que a coisa fosse anterior a si mesma. Assim, sob pena de regresso ao infinito, deve haver algo não causado, em que, portanto, essência e existência se identifiquem. Algo cuja essência é existir. Não podemos conceber positivamente o que isto é, mas este é o Deus dos filósofos medievais e, segundo eles, o Deus de Moisés: Aquele-Que-É (Êxodo, III, 14).

terça-feira, novembro 28, 2006

Texto do Antonio Couto

O texto do Antonio. Em breve: as fotos da semana Acadêmica e os textos do Cesar Schirmer e Fernando Fleck.
Abraços!
p.s.: as notas encontram-se no fim do artigo.

Questões Disputadas – Antonio Augusto Caldasso Couto
21 de novembro de 2006.

Tensão e harmonia entre teologia negativa e teologia positiva na Suma Teológica de Sto. Tomás de Aquino


Esse artigo tem como ponto de partida a percepção de uma aparente inconsistência na teologia de Sto. Tomás, ao constatar uma tensão entre as declarações iniciais de Sto. Tomás nas aberturas das questões 2-3 da 1ª parte da Suma Teológica (ST) e a sua exposição acerca dos nomes divinos na questão 13, também da 1ª parte da ST. Nas aberturas das questões 2-3, Sto Tomás faz declarações epistemológicas que, aparentemente, deveriam comprometê-lo, com uma teologia exclusivamente negativa, i.e., com uma teologia capaz apenas de conhecer e dizer que Deus é e o que ele não é, mas não capaz de conhecer e dizer o que ele é: “Conhecida a existência de algo, falta investigar como é, a fim de saber o que ele é. Mas como de Deus só podemos saber o que Ele não é, e não o que é, não se trata tanto de considerar como Ele é, quanto como não é”. (ST, I, q3)

No entanto, na questão 13, Sto. Tomás argumenta a favor da possibilidade de predicar-se “certos nomes” de modo afirmativo e substancialmente de Deus, dando curso à fundamentação da possibilidade de um discurso teológico positivo acerca de Deus: “... nomes atribuídos a Deus de maneira absoluta e afirmativa (...) significam a substância divina e são atribuídos a Deus substancialmente”. (ST, I, q.13, a.1)

A primeira citação mencionada faz referência às duas questões centrais da teologia, a questão de saber se deus existe e a questão de saber o que deus é. aquino responde à primeira questão demonstrando a existência de deus e à segunda demonstrando alguns de seus atributos. São demonstrações[1] que remontam do efeito a causa, i.e., que partindo do que é mais conhecido para nós, a saber, as criaturas, consideradas como efeitos de Deus, chegam até a consideração daquilo que, apesar de mais inteligível em si mesmo, é menos inteligível para nós, a saber, a causa primeira ou Deus. A questão acerca da existência de deus – apesar da polêmica em torno da validade de certos princípios pressupostos em suas provas e da unidade de suas conclusões - não apresenta uma aparente ambigüidade no núcleo de sua resposta: existe uma causa primeira e universal que possui algumas características peculiares àquilo que se entende por Deus. No entanto, na resposta acerca de qual é a natureza dessa causa primeira universal, encontra-se a aparente inconsistência apontada anteriormente, pois, Sto.Tomás, a esse respeito, afirma três coisas, duas na ordem do conhecer e outra na ordem do dizer, que podem, à primeira vista, parecer incompatíveis entre si, a saber: que não podemos conhecer o que deus é, mas antes o que ele não é; que podemos conhecê-lo a partir das criaturas; e que podemos significá-lo positiva e substancialmente. A aparente incompatibilidade se torna manifesta quando levamos em consideração que, no artigo 1 da questão 13, Sto. Tomás adotou o princípio epistemológico-semântico de que só “podemos nomear alguma coisa conforme nosso intelecto a pode conhecer[2]”. Ora se não podemos conhecer o que Deus é, mas antes o que ele não é, e se conhecer Deus a partir das criaturas não é conhecer o que ele é, como então poderíamos nomeá-lo positiva e substancialmente?
Poderíamos pensar que se não podemos conhecer o que Deus é, então, quando o conhecemos a partir das criaturas, conhecemos apenas o que ele não é, mas este não pode ser o caso, pois antes mesmo de chegar às questões 12-13, que tratam do modo de conhecer e nomear Deus, Sto. Tomás já demonstrara alguns atributos positivos de Deus, como e.g., bondade e perfeição. Poderíamos, então, pensar que esses atributos não se referem à essência de Deus, no entanto, S.Tomás, na questão 13, não apenas afirma que alguns nomes se predicam positiva e substancialmente de Deus, mas também refuta a posição de certos teólogos que pretenderam reduzir o significado dos nomes divinos a uma interpretação negativa ou a uma interpretação causal, aparentemente as duas maneiras de se nomear Deus sem que se pretenda atribuir algo positivamente à essência divina.
Na busca de entender como essas afirmações podem se harmonizar, passamos inicialmente a considerar aquilo que, metaforicamente, podemos chamar de abismo onto-gnosiológico entre o Criador e a criatura, querendo expressar, por meio dessa metáfora, a existência de uma distinção radical entre Deus e seus efeitos criados, no que diz respeito tanto aos seus modos de ser quanto de conhecer. A distinção, que queremos expressar por meio do termo “abismo” é radical porque a natureza divina é simples, infinita e independente, sendo Deus o único ser cuja natureza é idêntica a sua existência, enquanto a natureza criada é finita e passível de diversos tipos de composição, devendo possuir, no mínimo, a composição entre essência e existência[3], pois toda criatura depende do Ser Divino, tanto para ganhar existência, quanto para continuar a existir. Contudo, essa metáfora por nós utilizada, deve ser interpretada com cuidado, pois a distinção que visamos com ela expressar, apesar de radical, não deve ser entendida em sentido absoluto, como a metáfora do abismo poderia sugerir, pois não há somente diferenças, mas há também similitudes, ainda que remotas, entre o Criador e criatura. Se tal abismo fosse absoluto, i.e., se não houvesse nenhuma similitude entre a Causa Divina e seus efeitos, somente poderíamos, a partir das criaturas, dizer de Deus que Ele é, e o que Ele não é, i.e., afirmar que Ele é causa da existência do mundo e negar que o seu modo de ser fosse igual ou semelhante aos modos de ser dos seus efeitos criados. Mas o princípio de causalidade - o qual não admite a existência de uma causalidade completamente equívoca[4] - aliado à máxima perfeição Divina, exige que todas as perfeições criadas pré-existam em Deus de modo eminente, o que implica na existência de similitudes entre o Criador e a criatura. Assim, a metáfora do abismo onto-gnosiológico aponta, por um lado, para a impossibilidade de termos acesso à essência divina, já que o ser divino se encontra acima de todos os gêneros lógicos e de todas as categorias metafísicas, de modo que nos é impossível conhecer o que Deus é, e expressar tal conhecimento em uma definição, mas, por outro lado, aponta para a possibilidade de conhecermos positivamente algo acerca de Deus por meio da apreensão das remotas similitudes que as criaturas mantêm com o Criador.
Após assinalar a existência do abismo onto-gnosiológico entre Deus e as criaturas, devemos considerar os modos com que os entes racionais podem obter conhecimento de Deus, i.e., os modos com que cada gênero de ser intelectual pode, por assim dizer, cruzar tal abismo. Os diversos tipos de entes encontram-se distribuídos em uma hierarquia onto-gnosiológica, que estabelece um paralelismo entre o grau de ser e o grau da capacidade cognitiva de cada gênero de ente, de tal modo que um ente só pode naturalmente obter conhecimento qüididativo[5] de entes que lhe sejam co-naturais e isto de acordo com o seu modo próprio de conhecer. Assim, um ente não possui, naturalmente, capacidade cognitiva para receber a forma ou espécie de um ser que lhe seja ontologicamente superior, mas pode receber a forma ou espécie de um ente que lhe seja co-natural[6], o qual passa a ser conhecido de acordo com o modo de conhecer do sujeito cognoscente. Assim, os seres racionais corpóreos podem naturalmente conhecer a qüididade dos seres corpóreos e os seres puramente espirituais, ou anjos, podem naturalmente conhecer a qüididade não só dos seres espirituais, mas também dos corpóreos. Como Deus se encontra no cume dessa hierarquia onto-gnosiológica, sendo o único ser que é maximamente ser, maximamente inteligível e maximamente cognoscente, Ele é o único ser que pode naturalmente apreender a sua própria essência e possuir um conhecimento compreensivo de si mesmo e de todas as criaturas por Ele criadas. Os anjos e os homens precisam ser sobrenaturalmente elevados pela graça divina, para obterem um conhecimento qüididativo, embora nunca compreensivo, de Deus. Contudo, os anjos e os homens possuem distintos modos de naturalmente obter um conhecimento imperfeito de Deus, embora não qüididativo. Os anjos dispõem de um conhecimento infuso de Deus por meio de uma imperfeita similitude, ou idéia de Deus, implantada naturalmente no intelecto angélico, enquanto os homens podem, com os recursos da razão natural, apenas obter um conhecimento, ainda mais imperfeito de Deus, a partir das similitudes apreendidas nas criaturas.
Na questão 12, que trata do modo humano de conhecer Deus, fica claro que, quando Sto. Tomás diz que não podemos conhecer o que Deus é, está simplesmente dizendo que não podemos naturalmente ter uma apreensão da essência ou forma divina nesta vida, de modo que pudéssemos expressar a qüididade divina em uma definição, pois não podemos naturalmente ter um conhecimento qüididativo de Deus, nem por uma apreensão direta da essência divina, nem por inferência a partir da apreensão de seus efeitos, uma vez que a causalidade divina não é unívoca. No entanto, como a causalidade divina também não é completamente equívoca, podemos - valendo-nos apenas dos recursos da razão natural – apreender o modo deficiente com que as perfeições criadas representam Deus e, dessa forma, por meio do criado, podemos, de modo indireto e por inferência, conhecer imperfeitamente algo acerca do Criador. Parafraseando S. Paulo, no versículo 13 de sua 1a epístola aos Coríntios, podemos dizer que, embora não possamos naturalmente obter uma visão face a face de Deus, pois não podemos, por assim dizer, cruzar com nossos próprios recursos o abismo onto-gnosiológico, podemos, contando apenas com a razão natural, conhecê-lo a partir das criaturas, em uma visão como que por um espelho, pois as criaturas, na medida em que são efeitos de Deus, são capazes de refletir, ainda que imperfeitamente, algo acerca da Causa Divina que as produziu.
Sto. Tomás apresenta três vias, assimiladas de Pseudo-Dionísio Areopagita[7] e conhecidas como triplex via, por meio das quais o homem pode extrair a partir das criaturas um conhecimento acerca de Deus e significá-lo por nomes: a via da causalidade, a via da negação e a via da eminência. A via da causalidade diz respeito à pressuposição básica de qualquer demonstração acerca de Deus, a saber, o principio de causalidade, pois é por meio da consideração de Deus como causa primeira universal e de todas as criaturas como sendo seus efeitos, que se pode demonstrar a existência de Deus e também algo acerca da natureza divina a partir das criaturas. A via da remoção pode ter uma dupla aplicação, a saber, uma aplicação meramente negativa em que se nega a presença de imperfeições em Deus, e uma aplicação a serviço da via da eminência, na qual se nega, do conteúdo inteligível de uma atribuição positiva, o modo limitado com que uma perfeição é participada pela criatura. A via da eminência, por sua vez, supõe tanto a via da causalidade, na medida em que a causalidade divina permite a existência de similitudes entre o Criador e a criatura, quanto à via negativa, na medida em que necessita das operações de purificação, gnosiológica e semântica, efetuadas pela via +negativa, quando a serviço da via da eminência.
A atribuição ou predicação de nomes divinos, a partir das criaturas, enfrenta alguns problemas concernentes a sua possibilidade quando se considera que a natureza divina é una, simples e infinita, e que somos naturalmente aptos a conhecer apenas as perfeições que nos são co-naturais, de tal modo que as perfeições que apreendemos no mundo são efeitos compostos, múltiplos e finitos que pré-existem, de modo uno, simples e infinito, na natureza da Causa Divina. O juízo predicativo, por meio do qual efetuamos atribuições, envolve dois tipos de composição, a composição entre predicados, e a composição entre sujeito e predicado, mas sabemos que Deus é uno e simples. E também os nomes que atribuímos a Deus são originalmente cunhados para significar coisas pertencentes ao mundo criado e possuem uma significação ordinária limitada pela concepção que formamos das perfeições segundo o modo deficiente com que são participadas pelas criaturas, mas sabemos que a perfeição de Deus é eminente e plena.
Diante desses problemas alguns[8] teólogos pretenderam reduzir a significação dos nomes divinos a uma interpretação causal ou a uma interpretação negativa. Segundo alguns, todos os nomes divinos deveriam ser interpretados como significando apenas que Deus é causa de tal e tal perfeição, sem que tais perfeições fossem atribuídas a Deus, significando, assim, apenas que Deus é causa. Segundo outros, todos os nomes divinos, deveriam ser interpretados negativamente, como significando a ausência em Deus de uma imperfeição ou privação, significando, assim, apenas o que Deus não é. Sto. Tomás recusa essas interpretações reducionistas e defende que certos nomes se dizem afirmativa e substancialmente de Deus.
A justificativa de Sto. Tomás para mostrar como é possível que, na atribuição dos nomes divinos, o juízo predicativo não transporte composição, e que a atribuição de perfeições não implique no modo deficiente com que as perfeições são participadas pelas criaturas, ocorre por meio do uso combinado da triplex via, pela distinção entre o modo de significar (modus significandi) e a coisa significada (res significata), assim como pelo desenvolvimento de uma teoria da analogia.
Segundo Sto. Tomás, assim como o conhecer pressupõe o ser, e uma coisa é conhecida ao modo daquele que conhece, sem que este modo de conhecer seja atribuído ao que é conhecido, assim também o nomear pressupõe o conhecer, e uma coisa é nomeada de acordo com o modo com que é conhecida, sem que, no entanto, o modo de significar, derivado do modo de conhecer, seja atribuído àquilo que é significado. Assim, a multiplicidade e a composição são inerentes ao nosso modo de significar, pois uma coisa é conhecida e significada de acordo com o modo do sujeito que a conhece, e nós conhecemos Deus a partir das diversas noções sob as quais apreendemos seus múltiplos efeitos e articulamos tal conhecimento por meio de juízos proposicionais que estabelecem uma composição entre sujeito e predicado. No entanto, apesar de conhecermos Deus em um modo diferente do modo com que ele é, não conhecemos erroneamente o modo com que Ele é, pois conhecemos de modo múltiplo e composto que Deus é simples e uno, e assim também, embora nosso modo de significar envolva composição e multiplicidade, aquilo que esta sendo significado pelo nome divino não é múltiplo nem composto.
Quanto à significação dos nomes divinos, Sto. Tomás distingue entre os nomes que significam a negação de uma imperfeição em Deus, e que possuem uma significação meramente negativa, os nomes que significam perfeições[9] cujas noções implicam o modo de ser participado das criaturas, os quais possuem uma significação metafórica, e os nomes que se dizem positiva e substancialmente, os quais são ditos literalmente e propriamente de Deus e que significam perfeições puras. A predicação afirmativa e substancial de um nome divino envolve uma aplicação da triplex via. A via da causalidade está presente na medida em que a perfeição pura que esta se atribuindo a Deus é uma similitude que as criaturas enquanto efeitos mantêm com a causa divina da criação. A via negativa é utilizada na medida em que a perfeição pura, embora não envolva nenhuma conexão com a matéria, precisa ter a sua significação purificada do modo de ser participado, segundo o qual é apreendida nas criaturas. A seguir, tal significação deve ser superlativizada ou magnificada na via da eminência, para então poder ser atribuída afirmativa e substancialmente a Deus. No entanto, é importante ressaltar que, para Sto. Tomas, embora esses atributos pertençam mais propriamente a Deus do que as criaturas, eles não são capazes de fornecer um conhecimento do que Deus é, no sentido de que não são capazes de fornecer uma definição que expresse o que a natureza divina é, mas, apenas são capazes de empreender, de modo indireto e imperfeito, uma descrição parcial acerca do que Deus é a partir do modo com que as criaturas deficientemente O representam. Assim, quando Sto. Tomás diz que não podemos conhecer o que Deus é, está apenas dizendo que não podemos obter uma definição de Deus, mas não esta negando que se possa imperfeitamente conhecer algo acerca da sua essência. Quando diz que conhecemos antes o que Deus não é, não esta dizendo que todo o conhecimento que se obtém de Deus deva ser negativo, mas esta dizendo que, na ordem do conhecer apreendemos primeiro o que pertence às criaturas, para só depois apreender, deficientemente, aquilo que pertence a Deus. E quando diz que um nome é dito substancialmente de Deus não esta querendo dizer que ele seja capaz de significar a apreensão da substância ou essência divina, mas apenas que aquilo que está sendo significado pertence mais propriamente à natureza da Causa divina do que ao seu efeito.
Para encerrar é importante, ainda que para apenas mencionar, falar algo acerca da teoria da analogia, a qual surge no pensamento de Sto. Tomás como a tentativa de explicar o significado desses nomes que se afirmam positivamente de Deus e das criaturas, mas que significam Deus primariamente e de modo eminente. Uma vez que a causalidade divina não é unívoca e nem completamente equivoca, as similitudes com Deus não são apreendidas pelo intelecto humano sob a mesma noção, nem sob noções completamente diversas, de modo que os nomes divinos não significam nem de modo unívoco e nem de modo completamente equívoco aquilo que se está atribuindo a Deus e as criaturas. As remotas similitudes mantidas entre o efeito e a causa divina serão denominadas de similitudes analógicas e os nomes que as significam serão chamados de nomes análogos, tal significação analógica deverá ser capaz de preservar tanto um núcleo mínimo de significação comum entre Deus e as criaturas, quanto expressar a anterioridade e a eminência de tal significação no que diz respeito a Deus.

[1] Na ST, I, q2, a2, Sto. Tomás apresenta dois tipos de demonstrações, a saber, a demonstração propter quid ou per causam e a demonstração quia ou per effectum. A primeira também pode ser chamada de demonstração a priori, pois partindo do conhecimento do que é ontologicamente anterior, i.e., da causa, demonstra a existência dos efeitos e explica o seu porquê (propter quid), enquanto a segunda pode ser chamada de demonstração a posteriori, pois, quando não se possui um conhecimento direto da causa pode-se conhecê-la partindo do conhecimento do que é posterior ontologicamente, mas que é anterior para nós, i.e., gnosiolgicamente, a saber, os efeitos. Demonstra-se, assim, a existência da causa e também algumas de suas características, indiretamente, a partir de seus efeitos.
[2] “Secundum igitur quod aliquid a nobis intellectu cognosci potest, sic a nobis potest nominari”.
[3] Na ST, i, q3, Sto. Tomás prova o atributo da simplicidade divina removendo da noção de Deus todas as composições pertinentes às criaturas até remover a composição de essência e existência que é comum a toda a criatura. Ela é a composição caracteriza o ser criado geral, de tal modo que até mesmo os anjos, as criaturas mais próximas de Deus, possuem tal composição, na medida em que não são o ser subsistente por si mesmo e, como todas as criaturas, têm sua existência causada por Deus.
[4] O princípio de causalidade admitido por Sto. Tomás afirma que todo efeito deve expressar de algum modo a virtus de sua causa, em um grau inferior (causalidade equívoca) e até mesmo igual (causalidade unívoca), mas nunca superior, i.e., o efeito não pode nunca sobrepassar a virtus da causa que o produziu.
[5] Qüididade (quidditas) é um termo cunhado a partir da expressão latina quid est, que significa “que é” indicando o que uma coisa é, i.e., a sua essência conforme expressa pela definição. Assim, qüididade significa a essência de uma coisa e conhecimento qüididativo, o conhecimento da essência de uma coisa
[6] Co-naturalidade é uma noção que diz respeito à existência de uma conveniência cognitiva natural entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido quando ambos ocupam uma mesma posição na hierarquia ontológica o mundo natural ou mundo criado, posição esta que estabelece a possibilidade do sujeito cognoscente obter naturalmente conhecimento da essência do objeto em questão. Na ST, I, q12, a4 pode-se ler que “o conhecimento de todo aquele que conhece é segundo o modo de sua natureza. Assim, se o modo de ser de uma coisa conhecida ultrapassa o modo da natureza de quem conhece, o conhecimento dessa coisa estará sem dúvida acima da natureza daquele que conhece”. Segundo o princípio gnosiológico da conaturalidade, um ser só pode obter um conhecimento qüididativo natural dos seres que lhe são co-naturais, necessitando do auxílio da graça divina para apreender a essência dos que lhe são ontologicamente superiores.
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[7] A influência da metafísica neo-platônica e da teologia de Pseudo-Dionísio na metafísica e na teologia de Aquino é notória, basta considerar as inúmeras passagens na ST em que Sto.Tomás faz referência ou cita o “beato Dionísio”. Para um estudo do procedimento da assimilação crítica efetuada por Aquino sobre o corpus areopagiticum ver O’ ROURQUE, Fran; Pseudo-Dionysius and The Metaaphysics of Aquinas.
[8] Na ST, I, q13, a2 Aquino apresenta dois grupos de teólogos que pretenderam reduzir a significação dos nomes divinos ou a uma interpretação negativa ou a uma interpretação causal, e o único teólogo que tem o seu nome mencionado é o rabino Moisés Maimônides. Sto. Tomás situa o rabino entre os defensores da via negativa como via exclusiva para se falar acerca da essência de Deus, portanto, negando a possibilidade de um discurso positivo acerca de Deus.
[9] De modo geral perfeição, nesse contexto teológico, significa toda e qualquer qualidade ou determinação ontologicamente positiva do mundo criado, enquanto imperfeição significa privação ou limite daquilo que é ontologicamente positivo. Enquanto efeitos de Deus as perfeições de algum modo revelam o que Deus é, enquanto as imperfeições revelam o que Deus não é. Há também uma distinção clássica entre perfeição pura e perfeição mista. Perfeição pura denominada a perfeição cuja noção não inclui nenhum vínculo necessário com a finitude e as limitações próprias da criatura, enquanto que perfeição mista denomina aquela perfeição cuja noção implica finitude e alguma limitação própria da criatura, notadamente a materialiadade. Encontramos essa distinção na ST, I, q13, a3, ad1, embora Sto. Tomás não se valha da terminologia pura ou mista. Sto. Tomás fala dos nomes que significam perfeições incluindo o modo imperfeito com que são participadas pela criatura e dos nomes que as significam absolutamente, sendo que os primeiros só podem ser atribuídos metaforicamente de Deus, enquanto os segundos podem ser atribuídos literalmente.

terça-feira, novembro 14, 2006

IV Semana Acadêmica da Filosofia UFRGS



O Centro Acadêmico da Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul promoverá a IV Semana Acadêmica que terá como tema "O Deus da Filosofia". O evento acontecerá no auditório da Livraria Cultura do Bourbon Country, nos dias 20, 21 e 23 de novembro deste ano, a partir das 19h.
Contará com a presença dos Professores Doutores: Denis L. Rosenfield (UFRGS), Fernando Pio de Almeida Fleck (UFRGS) e Lia Levy (UFRGS). Também haverá espaço para debates, tanto com os professores quanto com os alunos da pós-graduação que apresentarão Questões Disputadas. O evento é gratuito e aberto a todos os estudantes e público em geral.

sábado, novembro 04, 2006

Mini-curso Hannah Arendt